Resenha #1 de 2025: "De onde eles vêm", de Jeferson Tenório
"De onde eles vêm", livro lançado em outubro de 2024 pelo escritor brasileiro Jeferson Tenório, foi a minha primeira escolha para o ano de 2025. O protagonista da obra é Joaquim, estudante negro - e cotista - que se vê em um ambiente que acredita não pertencer: a universidade brasileira, em um curso de filosofia que "só" caberia a uma certa elite pensante branca.
Desta forma, o livro é marcado pela discussão sobre o racismo e por todas as matizes que o permeiam, em especial em uma sociedade que tem na escravidão a sua principal marca histórica. Porém, é (bem mais) do que isto e é esta segunda característica que torna a obra tão interessante em minha análise: uma certa discussão metalinguística sobre a literatura e sobre a arte, em especial nesta década. Como nesta passagem:
"Era ali o início do meu poema? De onde vêm as palavras? De onde vêm os versos? De onde eles vêm? Talvez viessem de todos os lugares. De todas as partes do meu corpo. De todo o barulho ao redor. De todas as vozes que li. Do coração silencioso de minha mãe. Da sujeira e da degradação do mundo. Então percebi que o poema é arbitrário. Não nasce nem morre. Não tem lógica nem função. Trata-se apenas de fluxos." (posição 563-566)
O nosso contexto histórico, às voltas com o excesso de dopamina promovido pela 'economia da atenção' e pelo excessivo scroolling proveniente das redes sociais, está travado politicamente pela impossibilidade da imaginação de futuros alternativos, utópicos e (im)possíveis de serem alcançados, que precisam estar delimitados pela arte do possível. Tenório pontua como a leitura tem o potencial de inverter esta lógica:
"Quando você se torna leitor, viver de maneira harmônica com o mundo é impossível. A impressão é que estamos em constante desacordo com a realidade." (posição 2040-2041)
A arte, em todas as suas múltiplas variações, possui assim a chave de nos tirar dessa letargia imaginativa, ainda que para isso seja preciso acreditar na ingenuidade de que a abstração possa vencer a concretude da vida real em um país em que os indivíduos estão cada vez mais insatisfeitos com a sua própria condição:
"Tudo que havia em mim era ingenuidade, que é onde tudo começa, pensei, porque você só decide escrever depois de acreditar que pode fazer algo importante com as palavras. Talvez a ingenuidade seja necessária até o fim da vida para quem escreve." (posição 552-554)
O ano de 2024 encerrou-se com o fenômeno dos cinemas "Ainda Estou Aqui", que nos mostrou que a dor provocada por um regime autoritário ultrapassa delimitações de classe, de privilégio e de tempo. Ou seja: a arte a funcionar como resgate de memória. Que ela possa funcionar, também, como propulsora de novos sonhos, para que, ao fim, possamos concluir que: "E, olhando para todos ao meu redor, naquele momento entendi que de certo modo a minha luta era defender o meu direito à alegria." (posição 2409-2410)
[comentário: para alguém que, em Lisboa, realizou o sonho da amplidão intelectual como eu, esta passagem do livro do Tenório é por demais especial: "Quando chegamos à praça do Comércio e vi o rio Tejo ao fundo, fui atacado por um tipo de vertigem, porque tive a sensação de que aquela paisagem não cabia na minha visão. Era tudo tão amplo. (posição 2418-2419)]
Leituras Adicionais:
Carvalho, P. (2024, Dez. 2). Como 'Ainda Estou Aqui' inspira jovens a compartilhar no TikTok histórias de pais e avós torturados na ditadura. *BBC Brasil*. https://www.bbc.com/portuguese/articles/crk0mp5l26go
Levitin, M. (2024, Dez. 28). Social media, brain rot and the slow death of reading. *Financial Times*.
https://www.ft.com/content/fe9963aa-f4fd-4839-8732-5df7bc4317bb
Pina, R. (2024, Nov. 23). Brancos de classe média atacam cotistas porque perderam privilégio de ser medíocres, diz escritor pioneiro das cotas. *Folha de São Paulo*.